Jorge de Podebrady provavelmente chegou a França como refugiado da Boêmia, no começo do século XV. Quem nasce na Boêmia, logo, é um boêmio… esse rótulo se espalhou pela europa devido a expansão dos ciganos, com um sentido daquele que caminha sem rumo.
Muitos líderes perderam seus reinos em consequência dos abusos de poder, mas Jorge de Podebrady perdeu a Boêmia pelo crime de fomentar a esperança de um futuro pacífico para a humanidade. Quase esquecido hoje, o nome dele talvez seja encontrado em notas de em compêndios sobre a história tcheca e sobre as origens das Nações Unidas, como um dos primeiros a conceber um estatuto para a cooperação entre os países capaz de construir um mundo pacífico, ideia hoje controversa. Ironicamente, a primeira manifestação desse sonho morreu centenas de anos depois, quando os nazistas invadiram a terra natal de Podëbrady, em 1938, pondo a anos de autogoverno, interlúdio efémero de independência desde a morte dele, em 1461.
Se a sugestão de Jorge de Podëbrady parece ousada demais para ser verdade, vale observar que, em 2003, o ministro das Relações Exteriores da Dinamarca começou um importante discurso no Conselho da Europa atribuindo-lhe a ideia originária de uma Europa enquanto o historiador Robert Frank o situa no mesmo nível que Kant e Mazzini, entre os progenitores da União Europeia. Nenhum desses recentes hinos de louvor, registra o flagelo que recaiu sobre Jorge e seu reino, em consequência desse sonho. A história levou mais de quinhentos anos para reconhecer a importância de Jorge de Podëbrady, mas ainda não reparou a sina que afligiu a Boêmia.
Podëbrady assumiu o poder durante um período insólito e instável da Europa. A peste negra dizimou grande parte da população europeia no século XIV. O Cisma Papal, ou Grande Cisma, de 1378 transferia o papado de Roma para Avignon, reduzindo seu poder e submetendo-o, na opinião de muita gente, à influência indevida do rei francês. O Império Otomano (1299) projetava a sombra assustadora do Oriente Não muito antes os mongóis tinham varrido a Europa (1241), especificamente a Hungria, e eliminado o que se destacou brevemente como o importante reino da Boemia sob a bandeira do Sacro Império Romano-Germânico. Ao mesmo tempo, a influência alemã, dos mercadores que atuavam sob o estandarte da Liga Hanseática, exercia pressão econômica e política ao norte.
A principal cidade da Boemia, Praga, viveu dias de ouro sob o imperador Carlos IV, mas a dinastia que reinou antes se extinguiu; Carlos era da Casa de Luxemburgo e, ao chegar a Praga, falava uma palavra em tcheco.
Em 1848, fundou uma das primeiras universidades europeias e construiu grande parte do que ainda faz de Praga uma das mais elegantes e pitorescas cidades do mundo. Ele, contudo, ainda não era considerado tcheco. Depois de sua morte, a revolta começou a fermentar entre a nobreza tcheca, que ganhava voz no início de um dos maiores levantes da Idade Média.
Um dos primeiros alunos da universidade, e seu reitor a partir de 1408, foi o padre Jan Hus. Influenciado pela heresia de Lollard (lollardismo) na Inglaterra, ele pregou contra as indulgências papais e o poder do papado.
Foi excomungado e queimado em 1415, mas não antes de lançar as raízes do que viria a ser a Reforma, cem anos depois, deflagrando a insatisfação e o orgulho nacionalista na própria Boemia.
Os sucessores de Carlos se mostraram incapazes de manter os nobres sob controle. Os próprios hussitas se dividiram em duas facções, e Jorge de Podëbrady, um dos nobres da mais moderada, os utraquistas, foi eleito rei da pela Dieta Tcheca, em 1458. Mesmo que se considere tcheca a anterior dinastia presmilida – descendente do Bom Rei Venceslau, lembrado na canção de natal homônima – Jorge foi o primeiro rei boêmio durante séculos. E também foi o último.
Filho de influente nobre, Jorge, aos 14 anos, se destacou na Batalha de Lipany como importante nacionalista contra as forças austríacas húngaras. Ao assumir o trono, logo enfrentou problemas – os turcos haviam recapturado Constantinopla, em 1453, e eram uma grande ameaça de um lado, enquanto, de outro, o novo papa agora de volta a Roma, recusava-se a reconhecer seu governo, por ser Jorge membro da heresia hussita, e o excomungou. Na a dinastia com o apoio de muitos católicos tentou tomar o trono antes da eleição de Jorge, o que foi considerado um ato de desafio. Declarou-se, então, a Guerra Santa contra ele.
Ao mesmo tempo, Jorge herdou o manto de Hus e divulgou o manifesto nacionalista “Convocação as Armas em Defesa da Verdade”. A prensa inventada em 1454, possibilita a disponibilidade de literatura em língua tcheca. No documento, lia-se o seguinte trecho: “Tendo em mente, acima de tudo a glória de Deus, a preservação da santa verdade e a tranquilidade da terra tcheca, compreendemos que o papa, a quem cabe proteger e defender essa santa verdade com a própria vida, tenciona, ao contrário, destruir essa santa verdade, e, pior ainda, arrasar, aniquilar e eliminar totalmente a língua tcheca, meramente para preservar seu orgulho, sua avareza e seus outros vícios… ele inflama e incita os países e as línguas dos territórios circundantes contra nós.”
A manifestação foi memorável, não só pelo ataque arriscado ao mas pelo protonacionalismo, ao definir os tchecos pela língua e pela consciência do poder da unidade das nações.
Em 1463, Jorge tentou encontrar pelo menos um aliado, casando a filha Catarina com o rei húngaro Matias Corvino. Catarina, infelizmente, morreu no ano seguinte, e o filho de Corvino aliou-se aos nobres católicos em apoio ao papa, que declarou Jorge oficialmente deposto.
Talvez mais por desespero que por qualquer outro motivo, Jorge expôs sua ideia grandiosa. Em tese, seria a última trincheira para salvar o país. Decerto foi algo resultante mais da esperança que de qualquer outro propósito, e sua audácia selou o destino do país. Nesse intuito, ele despachou o cunhado em missão – vista por alguns como peregrinação – lembrada em um diário como notável incumbência e ousada aventura diplomática.
Em 25 de novembro de 1465, Leon de Rosmital, lorde tcheco, partiu de Praga para “visitar todos os reinos cristãos, assim como todos os principados religiosos e civis em solo e romano, e, em especial, o Santo Sepulcro e a tumba do amado apóstolo João”. Grande senhor piedoso? Talvez, mas ele próprio acrescentou que almejava essa viagem como um meio de “trazer lucros e vantagens para a própria vida”, e que pretendia beneficiar-se com ela “no exercício da arte militar” e “no estudo das práticas de países”.
Esses objetivos oficiais ocultavam uma missão diplomática secreta. Ele partiu como embaixador do rei da Boêmia com o objetivo de convencer reis e príncipes de que os estava visitando para convidá-los a aderir a um grande projeto, uma federação europeia, independente do papa e do imperador germânico. O rei francês Luis XI foi seduzido pela ideia, o que colocou a França no topo de sua organização. Para convencer os outros soberanos, Jorge de dispôs-se a ajudá-los a combater o avanço dos turcos no mundo cristão, mobilizando a federação europeia.
Ademais, propôs a constituição de um conselho permanente, incumbido de arbitrar os litígios entre os príncipes. Leon de Rosmital reuniu-se não só com Luis XI, mas com o duque de Borgonha, Filipe, o Bom; com o rei da Inglaterra, Eduardo IV; com o rei de Castela, Henrique IV; com o rei de Portugal, Afonso V; e com o rei de Aragão, João II.
Cada um dos anfitriões o tratou bem, convidando-o para jantares, bailes, torneios e touradas – mas nenhum deles levou a sério a proposta. O papa Pio II ficou furioso e redobrou os esforços para depô-lo com lider, por se tratar de um herege, cuja sugestão de uma Europa unida era menos ameaçadora para os turcos que para o papado em si.
Pio convocou uma cruzada contra Podebrady e os tchecos. Matias Corvino, ex-genro de Jorge, foi declarado pelo papa rei da Boêmia e a invadiu. Jorge, venceu uma batalha famosa em 1468, mas os húngaros conquistaram boa parte do leste do país.
Jorge, exausto de lutar em todas as frentes, morreu em 22 de março de 1471.
Suas tentativas de construir uma Europa unida se extinguiram com ele. Não havia dinastia – tratava-se de monarquia sufragada, hereditária – e o país sitiado não encontrou ninguém em suas próprias fileiras disposto a defendê-lo. Os membros da Dieta se entregaram primeiro aos reis poloneses, na esperança de proteção contra os húngaros e, 20 anos depois, aos Habsburgos que, em dois anos, os haviam destituído de todos os poderes, assim como aos checos, que perdurou até a Primeira Guerra Mundial.
O plano de Jorge isolou de tal maneira o país e assustou tanto os vizinhos que a combinação de heresia religiosa e inconformidade política por ele suscitada foi suficiente para persuadir as nações circundantes de que as ideias dele e do país por ele representado deveriam ser proscritas para sempre.
A Primavera de Praga, de 1968; a Revolução de Veludo, de 1989; e a subsequente ascensão do dramaturgo Vaclav Havbel ao poder talvez sejam o reconhecimento tardio da esperança despertada por Jorge de Podëbrady, não obstante seus planos tenham redundado na longa supressão de seu país…